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Pancreatite crônica

As pancreatites crônicas (PC) caracterizam-se pela substituição irreversível do parênquima pancreático normal por áreas de fibrose e pelo surgimento de estenoses e irregularidades nos ductos pancreáticos. Tais lesões são, em geral, progressivas, mesmo com a retirada do fator causal e cursam com insuficiência exócrina e endócrina do pâncreas.


A estimativa da real incidência da pancreatite crônica é dificultada pela ausência de critérios ideais para o diagnóstico da doença e pela heterogeneidade da metodologia utilizada pelos estudos. Apesar disso, acredita-se que seja mais comum em locais onde o consumo alcoólico e a alimentação rica em gorduras e proteínas são elevados. Sendo no Brasil a região Sudeste o local com maior incidência devido ao alto consumo, principalmente, de água ardente.


Quanto a classificação, no Brasil, habitualmente, a mais utilizada é a de Marselha-Roma, e baseia-se na etiopatogenia da doença, sendo a forma calcificante a mais frequente e o álcool, o agente etiológico mais comum.

Tem sido dada cada vez mais importância à identificação de mutações genéticas que predispõem às pancreatites crônicas, o que pode ocorrer na pancreatite crônica hereditária, na fibrose cística ou, mesmo, nas pancreatites crônicas alcoólicas.



ETIOLOGIA


Álcool:


A principal causa de pancreatite crônica em nosso meio, inquestionavelmente, é o uso abusivo de álcool. Qualquer tipo de bebida alcoólica, fermentada ou destilada, pode resultar na lesão pancreática crônica, desde que a quantidade de etanol consumida durante determinado tempo supere a dose considerada crítica (80 e 100 mL de etanol puro diário, respectivamente, para o sexo feminino e para o masculino, por um período superior a cinco anos).


Os exatos mecanismos pelos quais o álcool promove a lesão pancreática não são conhecidos, mas acredita-se que isso ocorra por uma série de fatores, como toxicidade direta às células acinares, produção de um suco pancreático litogênico, aumento do estresse oxidativo, indução da ativação prematura dos zimogênios pancreáticos e carências nutricionais relacionadas ao alcoolismo.


Interessantemente, somente 5% a 15% dos alcoolistas desenvolvem doença pancreática. Possivelmente, isto se deve à associação de outros fatores, como predisposição genética e influências ambientais, como a dieta e o tabaco. A frequente associação entre tabagismo e etilismo nos portadores de pancreatite crônica, potencializa os efeitos tóxicos do etanol acelerando a progressão da doença e agravando suas manifestações.


Pancreatite crônica hereditária:


Apresenta-se como uma síndrome de pancreatite aguda recorrente, geralmente provocando pancreatite crônica, com menção familiar de casos e ausência de fatores etiológicos evidentes para a doença. A sintomatologia surge precocemente e a gravidade dos surtos de pancreatite é variável.


Por seu início precoce, a ocorrência de insuficiência pancreática exócrina ou endócrina é comum com o passar do tempo. O reconhecimento dessa etiologia é importantíssimo, pois esses pacientes têm elevado risco de câncer de pâncreas após 30 a 40 anos da instalação da doença.


Pancreatite crônica nutricional:


Portadores de desnutrição proteica grave podem evoluir com lesões compatíveis com o diagnóstico de pancreatite crônica, embora o mecanismo exato para sua ocorrência seja pouco conhecido. Essa forma da doença é mais observada em países pobres de regiões tropicais.


Pancreatite crônica obstrutiva:


Qualquer situação que resulte em dificuldade de drenagem da secreção pancreática para o duodeno pode provocar pancreatite crônica. As principais causas são estenoses cicatriciais, congênitas, traumáticas ou cirúrgicas do ducto pancreático principal, inflamações da papila duodenal, pancreas divisum, malformações da junção biliopancreática e neoplasias intraductais mucinosas. Apesar da apresentação clínica como as pancreatites crônicas, a forma obstrutiva uma vez tratada, pode involuir e não desenvolver fibrose.


Pancreatite crônica autoimune (PCA):


Essa forma de pancreatite crônica é caracterizada pela presença de massas inflamatórias pancreáticas e irregularidades ductais nos exames de imagem, associadas à presença de hipergamaglobulinemia e, em geral, de autoanticorpos.


A boa resposta desses pacientes à corticoterapia favorece a ideia de uma etiologia inflamatória, e é comum a associação com outras doenças autoimunes, como a cirrose biliar primária, a síndrome de Sjögren e a colangite esclerosante.


Pancreatites crônicas relacionadas à mutações genéticas:


Os pacientes portadores dessas mutações apresentam pancreatite aguda ou crônica exacerbada, sem etiologia evidente e com início precoce, na maioria das vezes em torno dos 13 anos de idade. As principais mutações associadas a essa forma de pancreatite são as encontradas nos genes CFTR e SPINK1.6,7


Mutações do CFTR reduzem a capacidade de secreção iônica pelas membranas das células ductais pancreáticas, diminuindo o fluxo de enzimas a partir do sistema ductular, o que favoreceria a ativação prematura dessas enzimas.


A mutação do SPINK1 causa a produção de uma antitripsina pancreática com função comprometida, incapaz de combater os efeitos da tripsina ativada sobre o epitélio ductal pancreático.



QUADRO CLÍNICO


As pancreatites crônicas, particularmente as alcoólicas, predominam em homens entre 30 e 40 anos de idade. As formas hereditárias e nutricionais afetam indivíduos mais jovens, na 1ª ou 2ª década de vida, ao passo que as formas obstrutivas, as metabólicas e as idiopáticas prevalecem em indivíduos acima dos 40 anos.


A dor é sintoma habitualmente presente e manifesta-se sob a forma de crises dolorosas recorrentes, intensas, localizadas no andar superior do abdome, com duração de 1 a 7 dias, intercaladas por períodos de acalmia variáveis de meses a anos, precipitadas, quase sempre, pelo abuso alcoólico e/ou por alimentação gordurosa.


A redução do peso corporal é notada, pelo menos temporariamente, em quase todos os pacientes. Já a má absorção e o diabetes mellitus são manifestações tardias da afecção, surgindo, em média, dez anos após o início das crises dolorosas e resultam, respectivamente, da substituição do parênquima secretor exócrino e endócrino pela fibrose.


Pode aparecer icterícia, clínica e/ou laboratorial, devido a compressão do colédoco terminal, retropancreático, por aumento do volume da cabeça do pâncreas. Além disso, podem surgir cistos em qualquer fase evolutiva da afecção, que, eventualmente, são sede de complicações, como compressões de órgãos ou estruturas vizinhas, infecção, hemorragia, fistulização para vísceras ocas ou para o peritônio livre.

Complicações como derrames cavitários, hemorragia digestiva (exteriorizada sob a forma de hematêmese ou melena), necrose pancreática, abscessos e fístulas são menos frequentes mas podem estar presentes durante a evolução das pancreatites crônicas.

EXAMES LABORATORIAIS


A dosagem das enzimas pancreáticas, como amilase e lipase, pode estar alterada no sangue durante as crises de exacerbação da doença, especialmente em suas fases iniciais, quando o parênquima pancreático ainda se encontra relativamente preservado. Nas fases finais da afecção, é comum encontrar níveis normais dessas enzimas pela escassez da produção enzimática, secundária à extensa substituição do parênquima pancreático por fibrose.


Quando houver colestase, a fosfatase alcalina e a gamaglutamiltransferase, além das bilirrubinas séricas, também podem se elevar.


A determinação quantitativa dos componentes do suco pancreático, obtidos a partir da tubagem duodenal ou por cateterismo transpapilar após estímulo hormonal com secretina e colecistocinina, é, até o momento, o melhor método de avaliação da função exócrina do pâncreas. No entanto, esse exame não é passível de realização habitual devido alto custo.


Nas fezes, a pesquisa qualitativa de gordura pode sugerir a síndrome de má absorção relacionada à insuficiência pancreática. A dosagem de gordura, após dieta padronizada (balanço de gordura fecal), é útil para o diagnóstico do grau de envolvimento do pâncreas. Outro teste que tem sido utilizado é a dosagem fecal da elastase pancreática por técnica de ELISA, que reflete a reserva funcional do pâncreas exócrino por quantificar nas fezes essa enzima. No entanto, é pouco sensível, por não identificar pacientes com função pancreática minimamente reduzida.


A pancreatite autoimune será confirmada quando houver presença de determinados critérios diagnósticos como denso infiltrado linfoplasmocitário e acentuada fibrose periductal encontrado na análise histopatológica do pâncreas; presença de níveis séricos elevados de imunoglobulina G4; acometimento de outros órgãos pelo mesmo processo autoimune; e pela resposta clínica e radiológica à corticoterapia. Além disso, a detecção de autoanticorpos antianidrase carbônica e antilactoferrina podem ajudar no diagnóstico, embora sejam pouco disponíveis no nosso meio. Em muitos casos é feito somente a pesquisa de hiperglobulinemia, de fator antinuclear (FAN) e a dosagem da IgG4.



DIAGNÓSTICO


O diagnóstico das pancreatites crônicas depende de um contexto clínico apropriado associado a exames que reflitam a perda da função pancreática e a presença de anormalidades anatômicas compatíveis.


O diagnóstico costuma ser muito fácil em fases avançadas da doença. Por outro lado, o grande desafio é o diagnóstico precoce da doença naqueles indivíduos com dor abdominal sugestiva, mas com estudos de imagem pancreáticas normais ou com alterações inespecíficas.



TRATAMENTO


O tratamento da pancreatite crônica é baseado em aliviar a dor aguda e crônica, controlar o processo da doença para prevenir surtos recorrentes, corrigir consequências metabólicas, tratar as complicações que surgirem e abordar os problemas psicossociais.


Entre as medidas gerais, a abstinência alcoólica e suspensão do tabaco são indispensáveis e quando julgar necessário, o clínico deve encaminhar esse paciente a grupos de apoio ou equipes multidisciplinares capazes de auxiliar o paciente.


O tratamento da insuficiência exócrina pancreática baseia-se na administração oral de enzimas pancreáticas, afim de, evitar deficiências nutricionais potencialmente relevantes, associada a administração de inibidor da bomba de próton.


O aconselhamento nutricional com dieta normal associada à enzima pancreática é eficaz e capaz de melhorar as condições clínicas e nutricionais de mais de 80% dos pacientes. No entanto, pode ser necessária pequenas modificações dietéticas e sem sobrecarga de gordura, afim de, reduzir a dor e possibilitar maior ingestão proteicoenergética, melhorando o estado nutricional. Além disso, a suplementação de vitaminas lipossolúveis, vitamina B12 e outros micronutrientes pode ser fundamental ao tratamento.


Nos casos de insuficiência endócrina pode ser necessário, além do aconselhamento nutricional, o uso de hipoglicemiante oral ou até mesmo de insulina de acordo com o quadro clínico.


A intensidade da dor e seu caráter crônico tornam necessário o tratamento analgésico medicamentoso escalonado, começando pelos analgésicos comuns em associação ou não com codeína e progredindo para outros opioides. Nos casos de resposta inadequada ao tratamento com opioides deve-se utilizar analgésicos de ação central empregados no tratamento da dor crônica neuropática (ex: amitriptilina e gabapentina). A ausência de resposta ao tratamento medicamentoso da dor deve ser abordada inicialmente através da busca de complicações concomitantes, por exemplo, úlcera péptica, pseudocisto ou neoplasia pancreática.


Casos refratários ao tratamento clínico devem ser considerados candidatos para tratamento cirúrgico, pesando-se os riscos e as complicações cirúrgicas. As intervenções consistem em procedimentos de drenagem ou ablação pancreática e neuroablação.


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